Sociedade das bugigangas

Aproximam-se as festas do final de ano. Natal virou sinal de compras, de cores, luz, festa. Especialmente presentes. Mil presentes. Para a Maria, um par de brincos. Para João, umas chuteiras. Para Flávia, três presilhinhas para seus cabelos claros e alisados pelas chapinhas. Por falar nisso, um alisador de cachos para Camila. E assim vai.

As necessidades da gente vão virando desejos. Eu quero dois CD este fim de ano. Quero também mais cinco pares de sapatos, embora só tenha dois pés e já tenha no meu armário outros trinta e quatro – verdes, amarelos, azuis, já que estão na última moda – que ainda não foram usados. Além disso, outras camisetinhas básicas porque ninguém é de ferro.

Para sobreviver, não preciso só de afeto, alimento, alegria, bem estar, saúde, trabalho e vida. Preciso de mais três bolsas, quatro novos brincos – um dourado, um prateado, um branquinho e outro vermelho. Acredito veementemente que quanto mais bugigangas eu tiver, mais feliz serei. E vinculo minha satisfação e bem estar a novas compras, presentes, pequenos mimos. A vida vai virando uma lista interminável de coisas que, na ausência delas, coitada de mim. A idéia de que quanto mais bugigangas terei mais serei feliz parece estar estampada na cara de todo mundo.

Aos poucos, vou coisificando minha existência. “Tenho que comprar” virou lugar comum na boca de todo mundo. Por um lado, com as políticas públicas e as propostas de erradicação da pobreza, de fato, mais pessoas tem podido comprar – esse é um dado emancipador. Por outro lado, a ilusão de que quanto mais coisas eu tiver mais feliz serei também é uma idéia equivocada pois lá se vão nosso poder criativo, nossa capacidade crítica, nossa transcendência.

Por falar em transcendência, as religiões atuais são campeões nessa área. A quantidade de produtos que se vendem na TV, na mídia de um modo geral, é impressionante. E nessa questão, todo mundo peca. As campanhas giram em torno de “essa, você não pode perder”. O último lançamento do CD, os últimos livros de fulano de tal, os objetos de fé, os símbolos religiosos de um modo geral. Ninguém escapa dessa nova onde de: “aqui o terreno é do céu, então compre!”
E a gente vai reduzindo nossa humanidade a cada dia. Valho o que tenho, não mais o que sou. Preferencialmente se estou coberta por uma bela roupa de marca, último lançamento da coleção tal. “Ser” deu lugar ao “Ter” ou simplesmente a “parecer Ter”.

“Olhar para os lírios dos campos” para mim tem um significado singular. Preciso mesmo de tantos objetos para estar bem e ser feliz? O que pede meu coração frente a tantos apelos voltados ao consumo? Posso pensar claramente sobre o que de fato preciso, sem imposições alheias?

São perguntas que me faço neste fim de ano, desejando de coração que haja mais paz, mais saúde, mais tranqüilidade e satisfação numa vidinha minha que quase escorre pelas minhas mãos quando reduzo meu poder criativo e minha cidadania à mero consumo.

Somos seres humanos, não apenas consumidores!

Culturas locais

Já que hoje estou sem inspiração para escrever vou usar textos do poeta português Fernando Pessoa e do russo Vladimir Maiakovski.

Os dois pontuam coisas que, para mim, são significativamente importantes do ponto de vista de nossa cultura e do desrespeito que mundialmente se instalou, depois da chamada globalização.

De forma velada as expressões populares têm sido destruídas em função de uma imposição externa forte o bastante para nos forçar a mudar nossas atitudes e transformar o que somos e temos no que eles querem que sejamos e tenhamos. Especialmente que ‘não tenhamos’.

Por essas questões as culturas de massa estão aí, vendendo produtos de uma indústria cultural poderosa e opressora sobre as culturas dos países pobres e não industrializados.

Nietzsche critica esse estado de coisas. Adorno também pontua essas questões quando sinaliza os desmandos da cultura alemã.

Cada um em sua época, gemendo sua dor. Dor tão pouco sentida pela população porque ela toda vai com a multidão. Como a música do Zeca que diz: “deixa a vida me levar.”

Pensar dá muito trabalho mesmo.

A gente vai tentando construir nossa cultura. Cada um em sua época, discutindo, e refutando ou aceitando as imposições das elites e dos poderes instituídos sobre as pessoas.

Voltando ao assunto, veja o que diz o Maiakovski em relação à postura de submissão e aceitação popular:

“Na primeira noite
Eles aproximam-se
E colhem uma Flor
Do nosso jardim
E não dizemos nada.

Na segunda noite,
Já não se escondem:
Pisam as flores
Matam o nosso cão,
E não dizemos nada.

Até que um dia
O mais frágil deles
Entra sozinho em nossa casa,
Rouba-nos a lua e,
Conhecendo nosso medo,
Arranca-nos a voz da garganta
E porque não dissemos nada,
Já não podemos dizer nada.”

Depois dele temos nosso Fernando Pessoa que faz uma comparação entre o rio do Tejo, grande e famoso e o riozinho que corre pela sua aldeia.

Pessoa é de uma sensibilidade impressionante.

“O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,

Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia

Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia,

O Tejo tem grandes navios

E navega nele ainda,

Para aqueles que vêem em tudo o que lá não está,

A memória das naus.

O Tejo desce de Espanha

E o Tejo entra no mar em Portugal.

Toda a gente sabe isso.

Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia

E para onde ele vai

E donde ele vem.

E por isso, porque pertence a menos gente,

É mais livre e maior o rio da minha aldeia.

Pelo Tejo vai-se para o Mundo.

Para além do Tejo há a América

E a fortuna daqueles que a encontram.

Ninguém nunca pensou no que há para além

Do rio da minha aldeia.

O rio da minha aldeia não faz pensar em nada

Quem está ao pé dele está só ao pé dele.”

Se quero contextualizá-lo hoje, para mim, Pessoa faz uma pertinente citação acerca da importância da riqueza local em contraponto à globalização exacerbada que não respeita as identidades locais estabelecidas. Desconstrói, enquanto valoriza algo que é seu (no caso, o rio da sua aldeia), o mito de que a grama do vizinho é sempre mais verde do que a minha.

Obs.: Mito da grama verde
Figura 1
Figura 2

Penteadeiras, tunados e rebaixados…

Minha mãe costumava encher a penteadeira de nossa casa de coisas, frascos de perfumes (ainda que vazios), estojos para maquiagem, talcos, hidratantes etc.

Na época era elegante manter o quarto assim.

Uma penteadeira que era uma peça, normalmente de madeira, com espelho e algumas gavetas.

É provável que, naquela época, as pessoas se sentissem orgulhosas por terem condições de manter uma peça com tantos frascos e cores.

A gente se perdia ao ver tantas formas diferentes, além dos diversos perfumes.


Cada vaso daquele tinha uma forma específica
que, no conjunto, atraía e distraía o olhar das pessoas.

Eu me lembro de ter ficado horas me olhando refletida naquele espelho contornado por um tipo de madeira escura.

Há algum tempo ter coisas era tão importante que as pessoas se esforçavam para andar na moda, para não parecerem ‘caretas’, para estarem, de alguma forma, inseridas num determinado contexto social.

Hoje também é assim.

Neste último fim de semana foi promovido o Primeiro Campeonato de carros tunados e rebaixados de Jequié.

Eu saí com meu namorado à noite e, em todos os lugares onde estávamos, ouvíamos e víamos passar carros populares, mas com cores especiais, com sons muito potentes e rebaixados.

Alguns deles tinham neon por baixo e/ou dentro do porta-malas.

De uma forma geral a música era sempre uma espécie de arrocha. Depois escrevo o que penso desse tipo de música.

Eu ficava perguntando a noite inteira a Joe como era aquilo mesmo: carro rebaixado? Tunado?

E Joe ia tentando me explicar o que até agora eu ainda não entendi: os carros rebaixados não podem passar por ruas esburacadas, são extremamente sensíveis, passam por uma espécie de reforma pesada tendo as molas cortadas e os amortecedores também modificados.

“Tunar” um carro é uma forma de personalizá-lo. Rebaixar, também. Dar um aspecto pessoal ao seu móvel é elegante, sim.

Só que isso seria razoável se, no caso específico dos rebaixados, não tivéssemos ruas e rodovias tão cheias de buracos. Aqui em Jequié as ruas são mais parecidas com luas!

O outro aspecto que eu também gostaria de pontuar é que os proprietários dos veículos não me pareceram pessoas muito bem sucedidas financeiramente.

Perdoe-me se ofendo a alguém com essa afirmativa.

Tomara que a família desses senhores não sinta falta de suas necessidades essenciais já que o que se gasta com essas vaidades é verdadeiramente um absurdo.

Eu até tento compreender que algumas pessoas precisem mostrar às outras o que são a partir do que têm.


Talvez seja algum sentimento de inferioridade. Ainda não compreendi esse evento.

Não quero ser preconceituosa, mas ainda não percebi qual a função social do evento dos carros tunados e rebaixados.

Se alguém pode me esclarecer, por favor, me ajude!

Limites e compatibilidades entre o ser e o ter.

Ontem eu estava num dos salões do centro daqui de minha cidade aguardando uma pessoa e presenciei uma cena interessante.

Chegou um rapaz muito bem arrumado, desses que a gente costuma chamar de ‘metrosexual’. Todo arrumadinho, cheio de etiquetas, alto, loiro e elegante. Uma figura bonita. Ele havia ido ali clarear ainda mais o cabelo. Talvez fazer as unhas…

O que me fez refletir é que além do maravilhoso e diferenciado atendimento que ele recebeu, ofereceram-lhe uma revista e, na tentativa de tratá-lo da melhor forma possível, a recepcionista lhe sugeriu uma revista para ler. Ao ser perguntado sobre qual revista prefereria, ele, orgulhosamente respondeu: “tal revista, de preferência.” E eu fiquei agoniada. Eu queria ter questionado a preferência política da revista escolhida e ter dito que eu teria vergonha de ler aquilo na vista das pessoas. Não! Não era uma revista pornográfica! Era uma dessas revistas semanais que dão a impressão (e só a impressão) de que está instruindo e passando informações. O problema está aí: mensagens tendenciosas, cheias de pouca ética e rara possibilidade de demonstrar claramente vários pontos de vista sem qualquer viés.

Outro dia, enviaram-me alguns exemplares e, ao final do envio, uma moça desta mesma revista ligou para meu telefone comercial para firmar com ela sua assinatura. Eu pedi que não mais me enviassem aquilo e fui veemente nesse sentido. Não quero perder meu tempo lendo o que não me interessa.

Está bem. Assumo! Estou sendo radical. Talvez fosse interessante, em estando num salão de beleza da vida, ler algo assim ao menos para ter o que falar contra… conhecer é interessante, mesmo que seja o que você não concorda. Só não tenho tido tempo para isso.

No segundo semestre do ano passado esta mesma revista entortou falas de vários intelectuais brasileiros que são (como quase todo intelectual de bom senso) contra o neoliberalismo e pôs em xeque o pensamento dessas pessoas que tanto contribuem para o pensamento desta nação. Enviesou reflexões, distorceu idéias e tentou fazer-nos entender que no Brasil não se pode pensar. Bem a gosto da clara intenção dos países ricos: temos que ser mão de obra barata e não especializada: que eles produzam conhecimento e nós apenas o consumamos. É lastimável… Assim, o nosso ensino superior não passa de reprodutor de conhecimento (sem considerar outros níveis de educação), temos nossos pontos de vista pautados a partir da mídia e dizemos orgulhosos que estamos em desenvolvimento (?). Pedro Demo afirma que enquanto o primeiro mundo pesquisa os outros dão aulas. Rs.

Há uma diferença entre inteligência, informação, conhecimento e sabedoria.

Nada contra ser bonito e se cuidar. Só fica a contradição: ser e ter se confundem facilmente. Para nosso prejuízo.

Escolhi uma revista sobre maquiagem. Aprendi a usar melhor meu baton.

“Narciso acha feio o que não é espelho.”

Quem somos afinal?
(Iêda Sampaio)

O discurso de que “todos são iguais” reflete uma cultura de massa presente na nossa história, especialmente nesse momento em que se vive a terceira revolução industrial.
Enxurrada de informações e fácil acesso ao conhecimento, necessidade de ser capaz de articular questões e elaborar com habilidade sua própria existência, ou seja, ser crítico e autônomo confunde-se com imposições sociais ainda maiores, já que essas imposições culturais são feitas, via de regra, por dominadores, pelos detentores do poder, pelo próprio capitalismo.

Há uma forte campanha ideológica, insinuada, implícita, para que os modelos legitimados por uma minoria dominante sejam atendidos, aceitos, homologados por uma imensa maioria sem voz e sem vez, especialmente nesta Nação, em detrimento dessa última.

É como se as pessoas tivessem sofrido uma avalanche, ou por elas passasse um rolo compressor que as tornasse uma só. Iguais. Todas idênticas. Como uma grande massa, um produto qualquer, portador de passividade, de silêncio, de limitações.

Há uma mensagem explícita nas intenções, nas campanhas da mídia, nos discursos políticos e/ou ditos humanitários deste século: todos possuem direitos e deveres, ou seja, todos são cidadãos e necessitam, assim, de cidadania para serem ou sentirem-se homens e mulheres plenos, completos, realizados, participantes e agentes ativos na construção de seu próprio mundo. Que, diga-se de passagem, não é uma realidade dada, mas construída diariamente.

Há muitos exemplos que apontam a imposição ideológica que norteia nossa vida diária, mas cito apenas três deles neste texto, que chamarei de preconceito religioso, lingüístico e preconceito contra os Portadores de Necessidades Especiais.

Estes preconceitos dizem respeito a uma visão distorcida e pobre das diferenças, das individualidades, da pluralidade cultural que permeiam a vida das pessoas.

1. Preconceito Religioso. homens e mulheres possuem diferentes concepções de Deus. São pessoas iguais do ponto de vista humano, sim. Como Kant afirma, “moradores de uma mesma casa”. Discórdia de pensamentos, de percepção do Eterno não lhes impede de conviverem (e bem) com o outro ser humano, portanto, diferente dele.

Embora o Brasil seja um exemplo positivo dessa possibilidade de uma convivência saudável entre os de diferentes religiões, ainda há muita exclusão, estigma tecida em torno do outro, do meu diferente como pessoa, aqui ou ali, como se ‘o outro’ fosse um inimigo, alguém com quem devo lutar.

2. Preconceito Lingüístico. Vivemos no mesmo País e temos diferentes expressões de linguagem. Comunicações são diariamente estabelecidas e mesmo assim, existe o mito de que o povo brasileiro não conhece sua própria língua, como afirma Marcos Bagno em seu livro “Preconceito Linguístico”.

Na verdade, o povo resiste mesmo é a ‘privilegiada’ Gramatica Normativa – instrumento de poder legitimado pelos gramáticos. Logo, por pouquíssimas pessoas. É como se não considerassem que a língua é um fator histórico e que, em seu contorno, há todo um movimento de classes, de interesses, de necessidades do próprio homem.

Aqui, neste texto, não se faz uma apologia à linguagem não culta, muito menos se legitima os ditames da Gramática Normativa. Convida-se, sim, a uma reflexão acerca da quantidade de injustiça e preconceito que se efetua sobre e contra o brasileiro menos favorecido, que por questões sociais, históricos ou de outros aspectos, não teve acesso àquela gramática.

3. Preconceito contra os Portadores de Necessidades Especiais – PNE. Ainda vistos como coitadinhos e inválidos (idéia herdada dos tempos antigos e de uma concepção médica que perdurou e esteve como único ponto de vista até 1920 – (SASSAKI).

Vale ressaltar que essa prática, a da exclusão, ainda existe muito em nosso meio). Os PNE viveram muito tempo praticamente sem serem considerados gente, já que, sendo vistos como pessoas sem uma função ou valor na sociedade, não eram favorecidos com um olhar justo sobre sua cultura, suas particularidades, suas necessidades e/ou seu potencial humano mesmo de ser cidadão, capaz e produtivo.

Ainda é muito comum se flagrar pessoas com o pensamento e – pior – com o comportamento de quem vê o Deficiente Auditivo, Visual, Físico ou Mental como um doente mental. E há pessoas com medo de outras, apenas por suas diferenças.

Isso tudo em detrimento do que propôs a Declaração de Salamanca, por exemplo, ou outras muitas ações significativas efetivadas de entidades, organizações etc., sem contar as inúmeras páginas de legislação que já existe no sentido da inclusão. Infelizmente a sociedade ainda é exclusiva.

Se todos são iguais, por que não se pode dialogar com as diferenças? E o respeito? E a necessidade de convívio? E o imperativo da paz? Há mais questões ideológicas sobre essas forças contrárias do povo contra as injustiças do que se pode imaginar.

Cada pessoa é uma. E Cada pessoa é parte de um todo. Durckeim já afirmava a força da sociedade sobre a formação ou a existência do homem. A pessoa humana e a sociedade sofrem todos esses preconceitos, sejam eles provocados ou construídos por elas e/ou apenas recebidos e aceitos sem reflexão – típico dos preconceitos.

Sócrates já afirmava na Antiguidade Clássica que o maior mal que o homem sofre é o que ele mesmo provoca, pois, ao fazer o mal ele tanto provoca o mal ao outro quanto se corrompe a si próprio (entenda-se ‘mal’, neste texto, como a aceitação a todos os preconceitos contra a própria espécie humana).

Se no aspecto pessoal isso é ruim, que dizer de toda a sociedade com posturas preconceituosas? As conseqüências disso se percebe nas dores e angústias que os excluídos vivenciam diariamente.

Excluir a exclusão já foi prenúncio da Declaração dos Direitos Humanos no século passado. Excluir a exclusão é um grito necessário em nome da paz e do bem comum e em nome da superação da pessoa humana na sua superação, na sua “vocação ontológica de ser mais” (FREIRE).

É necessário desligar-se das construções massificadoras e assumir-se como pessoa única, com suas preferências, não se esquecendo, porém, que somos uma construção social. Ou seja, qualquer movimento para uma transformação dessas posturas equivocadas e preconceituosas deverá passar necessariamente por uma atitude pessoa e pela alteração das concepções sociais acerca do que é ideologia, cultura de massa, multicuturalismo e diálogo, …muito diálogo.

Ainda insistimos em afirmar que todos são iguais. Há que se entender que há diversidade na unidade e que somos iguais, sim, mas muito diferentes uns dos outros.