Endereço do Coração

jequie-noite

Pouca gente entendeu o que levou Mandela,  o tão querido e famoso líder africano, a desejar ser enterrado em Qunu.

Qunu é uma pequena aldeia com aproximadamente 200 habitantes que fica situada na província do Cabo, na zona rural do sudeste da África do Sul.

Observe que Qunu não foi o lugar onde ele tinha nascido, mas era o lugar de sua infância.

Dizem que foi ali que ele aprendeu as primeiras letras. Provavelmente ele reconhecia que ali fora o primeiro lugar de suas possibilidades, de seus primeiros amiguinhos, de sua vivência infantil mais significativa.

Qualquer estudioso sabe que aos sete anos de idade você está praticamente fechando sua personalidade.

O pequeno Mandelinha certamente ainda não tinha muita noção do quanto seria conhecido mundialmente, mas já sabia que ali, em Qunu, onde se percebeu gente pela primeira vez, seria seu lugar para sempre.

Ainda que ele conhecesse muitos outros lugares no mundo, aquela pequena aldeia seria sua principal referência de humanidade. E, ali, ele desejaria repousar.

Talvez o mesmo sentimento do Mandela tenha visitado nosso querido Fernando Pessoa, o poeta português, enquanto escrevia sobre o riozinho da sua aldeia.

Entendo que Fernando quase lacrimeja escrevendo:

“O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,

Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia

Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia…

O Tejo desce de Espanha   

E entra no mar em Portugal.

Toda a gente sabe isso.

Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia

E para onde ele vai

E donde ele vem.”

O que o poeta afirma é que embora o Tejo seja um rio famoso e belo que percorra grandes países da Europa, seu riozinho talvez seja a coisa mais importante e mais belo que ele conhecia.

Era o seu rio, o rio de sua referência, de suas histórias infantis, de suas simbolizações mais significativas.

Temos também a tão conhecida Canção do exílio, do escritor Gonçalves Dias. Ele nos encanta com sua saudade assim:

“Minha terra tem palmeiras,

Onde canta o Sabiá;

As aves que aqui gorjeiam,

Não gorjeiam como lá.

Nosso céu tem mais estrelas,

Nossas várzeas têm mais flores,

Nossos bosques têm mais vida,

Nossa vida mais amores.

Não permita Deus que eu morra,

Sem que eu volte para lá;

Sem que desfrute os primores

Que não encontro por cá;

Sem que ainda aviste as palmeiras,

Onde canta o Sabiá.

Esse poema tem cheiro, marca e tom de saudade. De saudade de um lugar extremamente importante para o poeta. Era para lá que Gonçalves Dias desejava voltar.

E enquanto falamos de todas essas pessoas importantes, eu me lembro de um outro choro, de uma outra declaração de amor por sua terra, quando o nordestino maltratado pela seca abre sua queixosa sanfona e alardeia pelos quatro cantos que só deixaria o seu “Cariri no último pau de arara.”

O amor ao seu lugar era cantado mais ou menos assim:

“A vida aqui só é ruim quando não chove no chão

Mas se chover dá de tudo –  fartura tem de montão

Tomara que chova logo! Tomara, meu Deus,  tomara!

Só deixo o meu cariri no último pau-de-arara.”

Cariri era seu lugar, era seu chão. O local conhecido por ele. Onde ele também vivia todas as suas possibilidades. Suas dores, suas alegrias, suas histórias.  Pau de arara era um tipo de caminhão para viagens longas de população de baixa renda. Nela uma tora central era usada para amarrar as redes para dormir. E era desse jeito que o nordestino deixava seu cantinho, sua pobre casinha, para tentar a vida lá fora, provavelmente em São Paulo, na esperança de “melhorar” a vida, de poder beber água fresca, de ter uma nova chance, de prosperar.

Independente de alguns terem conseguido êxito pelas terras de lá, saudade era lugar comum em suas falas, em seus sotaques de gente da terra: um dia eu volto para meu lugar.

A terra da gente é o lugar de nossa segurança, onde temos o sentimento de que estamos seguros e de que nada ou nenhuma agressão externa nos afetará.

A terra da gente é uma das principais referências que fazemos, inconscientemente, do útero de nossa mãe.

A terra da gente é, talvez, a representação mais fidedigna de nossa própria mãe.

E provavelmente por isso, tantos de nós, quando estando longe, queiramos retornar.

É para um lugar de origem, de segurança, de descanso, de proteção, de alimento e paz que o homem, a mulher ou a criança irão, sempre, desejar voltar.


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  1. Me ensinaram na escola um patriotismo sociopolítico, cívico. Cantava o Hino Nacional Brasileiro a plenos pulmões, desde a 1ª série, pelos idos de 95. Disciplinado sempre (adestrado, até certo ponto), olhar fixo para o alto, mão direita no lado esquerdo do peito, tórax projetado, num corpo frágil e ereto. Anos mais tarde, alguns estranhamentos e desconfianças depois, criticidade tomando forma, não vejo mais sentido em tanta emoção. Como o fato de ter nascido em determinado lugar (ao acaso, diriam alguns) pode me enlaçar tão fortemente a ele, de forma que lhe devote minha vida? Principalmente se este lugar-Estado mais subtrai que me dá em troca e é terra de desigualdades abismais! Entretanto, nunca aprendi a deixar de sentir. Sinto ou não sinto, não domino isso, que é coisa que corre à revelia. Faço o juramento do TG com um nó na garganta, mas o Hino Nacional age tal qual em outros tempos. Só mais tarde é que aprendo a lidar com isso e me tranquilizo. A territorialidade, mais que geopolítica, é afetiva, existencial, é vivência estética. É memória, em cheiros, cores, paisagens, imagens, sentimentos não passíveis de verbalizar. Por isso, onde quer que vá, vou querer voltar e reencontrar o lugar onde verdadeiramente me encontro.

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